segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Oi, posso falar com a minha mãe?

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Eu confesso. Eu já passei trote para o serviço público de resgate. Eu tinha uns 10 anos, e fazia tênis no Centro Esportivo do bairro onde eu morava. Lá, na parede de entrada, tinha um orelhão. Em dias de chuva, ou quando a professora faltava, ele se tornava um instrumento de entretenimento do mal.

Eu e mais algumas colegas, todas com muito fogo no rabo, ligávamos para o bombeiro e, quando ouvíamos a voz do outro lado do gancho, dizíamos coisas idiotas como “Oi. Posso falar com a minha mãe?”.

É, eu sei. Meu passado realmente me condena. Quero dizer, em alguns lugares o trote é crime e tudo mais. Então nem digo de forma figurativa. Mas essa não é a questão.

Crianças são seres em transição. Transição entre o estado de nascer e simplesmente ser. Não é filosofia. É sério. Aos cinco anos, aquilo que você tem como comparativo entre bom e ruim, errado e certo, seu e do outro é completamente limitado. Você não sabe qual é a sua comida favorita, porque só experimentou a gororoba que sua mãe lhe enfiou goela abaixo. O mesmo vale para música, filmes, profissão e comportamento.

E a descoberta das suas próprias características nem sempre é graciosa e gradativa. Eu, por exemplo, sempre me ferrei redondamente nesse aspecto. Sou fruto de pai e mãe psicólogos, que analisavam meus rabiscos mesmo antes do boneco-palito parecer remotamente uma figura humana. O mínimo comportamento “anormal” era posto em discussão. Minha mãe gosta muito de discutir as coisas. Meu pai gosta muito de colocar ponto final nas coisas. Eu, inevitavelmente, aprendi que da discussão tem que sair um ponto final. Minha auto-consciência tornou-se ligeiramente neurótica.

Mesmo sem nunca perceber (até hoje, durante uma epifania), fazer amigos, para mim, era a mesma coisa que ganhar novos livros de colorir. Eu devia observar a figura antes, entender o que ela significava, e então pintar o pedaço da cor apropriada. Só que a cor era uma característica, eu era o desenho em branco, e a figura-como-ela-deveria-ser eram os amigos. Em suma: eu usei chapéu da Eliana, calça legging (daquelas de pezinho), tênis de skatista, ouvi “É o Tchan” e muitos outros itens para uma lista desnecessária.

Não foi até que eu mudei de ambiente, quando passei vestibulinho para uma escola técnica, onde cursei o ensino médio, é que perdi algumas das minhas referências. Afinal, os garotos dali não jogavam bola – jogavam truco e Magic. As garotas não jogavam vôlei, e sim handball e danças circulares. Era um ambiente completamente estranho.
Perder referências, no final, foi bom. Eu era um turbilhão de coisas, e eu não era nada. Afinal, eu não conhecia ninguém ali. As pessoas que estudaram comigo desde o maternal até a oitava série ficaram para trás. Não tinha o cara-mais-bonito que todo mundo amava, nem a menina que sempre era a Power-ranger-rosa nas brincadeiras, e eu não era a pessoa mais nerd do mundo, como antes. E todos os outros, como eu, estavam com uma mão na frente e outra atrás.

O gosto por escrever, por exemplo, foi uma das descobertas daquela época. Eu sempre escrevi, mas nunca parei para pensar porque, e como eu gostava. Lá, tudo se tornou mais claro. Quanto aos livros, eu só sabia que gostava de ter um livro por perto – o cheiro, a textura das páginas, as palavras – era tudo muito confortável.

Com o tempo, ganhei cores diferentes. Um armário diferente. Uma setlist com cara de Juliana. E, só para complicar minha vida, algumas personalidades independentes. E quando mais olhava para trás, mais a ideia de passar trote para o Bombeiro parecia ridícula. Menos eu gostava da colega de infância e mais eu queria fugir do ambiente onde eu passara meus “primeiros dias”.

Hoje, eu também não ou mais a garota da escola técnica, obviamente. A faculdade exige certas posturas, e o trabalho algumas outras. Quando mais o tempo passa, mais definida fica a nossa auto-escultura. Quanto mais o tempo passa, mais o passado parece outra vida.

Um comentário:

  1. Eu não diria que nossa auto-escultura fica definida conforme o tempo passa, se parar pra pensar, existem várias figuras desenhadas uma em cima da outra, com borrões aqui e ali.

    Ah não ser que haja algo que nos possibilite ter uma folha nova a cada mudança, o que não acho ser possível, - pelo menos não em condições saudáveis - afinal, não se esquece o que fomos quando criança, nem adolecentes, nem adultos...

    Vamos eliminando e absorvendo um pouco de nós a cada dia.

    Boa semana. :*

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