quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A mala de lembranças

[Esse post é uma "meio" continuação deste aqui]





A música retumbava em seus ouvidos mais alto do que deveria. Mais baixo do que ela gostaria. Estava de olhos fechados, sentindo o vento forte do fim da tarde, vento de tempestade.

"I tell my love to wreck it all..."

Ela não gostava de pensar nos significados das músicas. Significados eram objetivos. Significados podiam cortá-la, fazê-la sangrar. Significados podiam matá-la.

Engoliu, deixando a saliva aliviar sua garganta seca e apertou mais as mãos em volta das alças ásperas da mala de viajem em que estava sentada. Os dedos começavam a ficar brancos.

"Cut out all the ropes and let me fall..."

Encontrava-se na exata posição a qual chamavam de "incerta". Zero graus a oeste, leste, sul e norte. Especialmente norte. A bússola devia estar descompassada.

Mas, ao contrário do que parece óbvio, aquele era exatamente o lugar ao qual quisera chegar. Não estava pedindo carona e nem decidindo para onde iria a seguir - ela já sabia disso há muito tempo. Aquele era seu "meio termo". Seu muro de segurança.

Era uma estrada longa. Vazia. Rodeada por nada além de árvores. Aquele lugar, como ela, estava sempre a cinco minutos de distância da maior tempestade do século.

"Right in the moment this order's tall..."

E então o relógio andou. E a onda veio - raiva, amor, felicidade, frustração, esperança, tristeza, indiferença, terror, desespero e euforia. Tudo junto e condensado, para que não pudesse separar um do outro e não pudesse se esconder de nada.

Menos a paz. A paz nunca viria. Querendo paz, ela precisava fazer o que sempre fazia - abrir o grande buraco negro que vivia em seu estômago e empurrar, com toda a força que tinha (e naquele momento não poderia se concentrar em nenhuma outra tarefa, nem mesmo respirar), a onda lá para dentro. Mas assim como Chronos, aquela onda também era imortal, e não ficaria adormecida para sempre. Logo, aquilo tudo deveria se repetir. E de novo. E de novo. E de novo...

E então aconteceu. Ela abriu os olhos.

"I told you to be patient
I told you to be fine
I told you to be balanced
I told you to be kind"

Ela decidiu em uma batida de coração. E estava de pé. Abriu a mala e puxou as muitas lembranças de lá de dentro.
Algumas eram aranhas, moscas, formigas e lesmas. Mas outras eram pássaros - grandes, coloridos e com longas e resistentes asas.

Ela as soltou - todas elas - e assistiu enquanto se dispersavam. As primeiras gotas caíram geladas, mas ela não se encolheu. Era uma chuva pesada, densa e barulhenta. O vento fustigava seus cabelos negros ensopados. E, no momento em que a onda a atingiu, ela gritou.

O mais alto que conseguiu. O mais alto que quis. O pulmão e a garganta transformando-se em chamas. Olhou para suas próprias mãos, que há segundos atrás seguravam as alças de sua bagagem. Riu um riso maluco. Uma gargalhada.

Sabia que não poderia descrever a sensação de ser habitada pelas próprias emoções, mas podia correr. E correu. Girou. Dançou. Chorou. Esperneou e, por fim, deitou-se no chão, deixando que a chuva terminasse de fazer o seu trabalho, observando o céu cor de chumbo em cima de si.

Uma das memórias voltou para perto. Um pássaro. Era negro e enorme - os olhos brilhantes e grandes, como jabuticabas, as penas como petróleo. Ele não se molhava na chuva. Ele nem mesmo se incomodava com o frio.

O pássaro pousou ao seu lado e lhe deu uma bicadinha amistosa na mão. A garota sentou-se e, pela primeira vez, sentiu hesitação. A ave a olhou com medo - não queria voltar à mala.

Ofereceu a mão ao pássaro e ele subiu. Olharam-se por alguns segundos, até que ela decidisse. O pássaro, que era sua pior e mais querida memória, abriu as asas e soltou um som que pareceu inundar o lugar - era um grito de vida e morte. E então ele penetrou o peito da menina, tornando-se parte do sangue que circulava por suas veias mais uma vez. Era tóxico. Azedo. Assustador. E também muito necessário.

A estrada começou a desaparecer devagar, enquanto a garota levantava e tomava, finalmente, seu caminho.

"Who will love you?
Who will fight?
Who will fall far behind?"

11 comentários:

  1. Você certamente irá rir. Mas eu fico - às vezes - assustada ao ler seus contos. Chegam a ser reais, mesmo que cheios de figuras de linguagem. Mas sempre, sempre, sempre vou ficar impressionada. E mais detalhes num e-mail.

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    1. Eu dei uma leve risadinha, confesso. Mas é porque é a parte mais divertida de escrever!

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  2. Gata, acho que você bebe do néctar da criatividade e come da ambrosia das maravilhas todos os dias, porque de você só sai coisa boa.
    Sou sua fã!

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    1. Ui, quer conferir meu estoque, gata? HAUAHUAHA


      Também sou sua *-*

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  3. Tantas imagens que dizem tanto. É sempre tão real, tão rico... que muitas vezes me perco dentro dos seus textos.
    Parabéns!

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  4. Valeu Sacha! :D

    Prefiro imaginar que as pessoas encontram algo nos texto, ao invés de perder. Mas impactar...Esse é o importante :)

    Agora vou lá ver seu blog XD

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  5. Eu estou impressionado, e confesso que não pude deixar de cantarolar enquanto lia, me senti na cena, parte de tudo. É como se a cena acontecesse na minha frente. Adorei o texto, muito bem escrito, muito bem descrito. Preciso ler mais do seu blog. :D

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    1. fiquei feliz com seu comentário \o/


      Precisa mesmo, mister ;)

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Isto aqui tem cara de boa proza ... Te sigo!
    Passe em Girl Liberdade, lá tem um lugar especial pra você na área Vip!!! ^^
    Besos,
    TL.
    http://blogstayy.blogspot.com/

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