quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sobre eu, você e o tempo

"O tempo é fluido por aqui"
- Os Outros, Neil Gaiman




Dizem que o tempo é como a água. Parada ao seu redor, imóvel - desde que você também esteja parado. Mas, ao movimentar-se, formam-se ondas, que tamborilam pela superfície e lançam um fluxo descontínuo para o fundo. Ao atingir uma segunda superfície intransponível, a onda refaz o caminho e atinge seu criador.

Eu penso diferente. Para mim, o tempo é como fumaça. Se ficar em silêncio e prestar bastante atenção, pode senti-lo ao seu redor, frio e formigante contra a pele e sufocante aos pulmões. Mas, por mais que tente, não pode pegá-lo. A matéria do tempo esvaíra-se por entre os dedos a cada tentativa.

A única opção é seguir em frente e rezar para que não haja nenhuma coisa monstruosa, escondida logo à frente, observando.



#1
31 de dezembro de 1999

O telefone tocou às 22 horas em ponto. Desci correndo as escadas, quase tropeçando em meus próprios pés. Não esperava a ligação de ninguém em especial.

- Alô?

Do outro lado da linha, Ouvi barulho de vozes, buzinas e estouros, que lembravam fogos de artifício. Uma voz feminina gritou, por cima dos ruídos:

- ABBY?!?

- Sim. Quem fala?

- Ai meu deus!!! Isso é incrível! Sabe como isso é incrível? - a voz parecia realmente empolgada e eu começava a achar que fora engano. Ou talvez não, já que a outra sabia meu nome.

- Quem está falando? – insisti.

- Essa é uma ótima pergunta! Aqui quem fala é alguém que você ainda não conheceu! - a voz esgoelava, claramente maravilhada com algo que, naquele instante, estava completamente fora de minha compreensão.

- Desculpa... O que foi que disse?

Tinha certeza que a voz era desconhecida. Minha memória auditiva era ótima, e ela não pertencia a nenhum de meus amigos... A coisa mais lógica era reconhecer que aquilo era um trote e desligar. Mas... Um formigamento. Curiosidade. Aquilo era, no mínimo, curioso.

- Eu disse que ainda vamos nos conhecer, Abby, minha queridinha - a voz era sarcástica, mas não agressiva. Agora os ruídos iam desaparecendo, e a voz tornava-se mais clara. A pessoa devia ter fechado alguma porta, ou entrado em algum cômodo mais calmo - Mas não foi por isso que eu liguei!

- Ah, não? E porque foi que você ligou? - aquela mulher era maluca. Obviamente. A coisa sensata era desligar o telefone.

- Para te preparar. Sabe, as coisas por aí vão ficar um pouco complicadas nos próximos meses e, quem sabe, até nos próximos anos... Mas você precisa pensar positivamente.

- Complicadas, é? Complicadas como? E pensamento positivo é para quem gosta de se enganar. A melhor forma de se preparar é aceitar que merdas acontecem a todo o tempo - ou talvez a louca fosse eu, tagarelando assim sem nem saber quem falava do outro lado. Em resposta, a voz gargalhou. Uma risada gostosa.

- Abbyzinha, escuta só o que eu vou te dizer. Escuta, e guarda bem a informação, tá? Um dia você vai estar na pior, toda cheia de ideias malucas, energias negras e coisas ruins percorrendo suas correntes sanguíneas. É aí que você vai me conhecer. Talvez você não me reconheça de imediato, mas vai descobrir, eventualmente, quem eu sou. E é essa a parte importante da história, ok? Está me ouvindo?

- Uhm... Sim, estou. Claro - e eu realmente estava. Quem pode me culpar? Eu tinha 10 anos.

- Você precisa me contar. Quem eu sou, eu quero dizer. Você precisa me lembrar de quem eu sou, e o que tenho que fazer.

- Mas o que é que você tem que fazer? - eu perguntei, porque até aquele momento ela não tinha falado nada, nem mesmo quem ela era. Como é que faria qualquer coisa sem saber isso?

- Eu sou seu anjo, Abbyzinha. E eu tenho que te ajudar a perder o medo... - nesse momento, a voz da moça foi interrompida por um forte PI PI PI PI, que indicava que a linha havia caído.

Eu fiquei um bom tempo parada, com o telefone ainda colado ao rosto, sem respirar. Meus olhos não estavam focando em nada e minha mente estava apontada apenas em uma pergunta: perder o medo do que? Eu teria dito aquelas palavras em voz alta, mas me sentiria tola.

Aquele episódio todo sumiu da minha cabeça no dia seguinte. Porque é assim que as crianças são.


#2
31 de dezembro de 2011

Era a primeira vez que eu passava a virada do ano longe de casa e estava com um pouco de medo. Medo da perspectiva de estar crescendo, talvez, e do fato de que eu estava a quilômetros de casa e parecia que ninguém ali falava a minha língua. Mas era quase ano novo e eu queria superar. Peguei um copo novo na cozinha lotada de gente que eu não conhecia, preparei uma cuba libre das boas e virei tudo rapidinho.

Essa era a primeira festa que uma amiga minha dava em seu novo apartamento. Um apartamento só seu, bem longe de sua cidade natal. Tentei entrar nesse clima de liberdade.

A verdade é que eu não estava nem um pouco animada. Me sentia esmagada. Irritada. Cansada e contrafeita. Essas eram sensações que não me abandonavam há algum tempo e eu começava a imaginar se um dia elas chegariam a ir embora. Tentei afastar aqueles pensamentos, mas depois de abrir a porta para aquele tipo de assunto, era dificílimo fechá-la.

Despejei mais rum no copo, respirei fundo e explorei a casa. Olhei no relógio, 22 horas. Encontrei um cômodo vazio, uma espécie de quarto-banheiro, como uma daquelas cozinhas e salas divididas por um balcão. Era bem interessante. Sentei num pufe, escondida no canto e encostei minha cabeça na parede, respirando alto.

A porta se abriu abruptamente e antes que eu pudesse me mexer, tanto para sair dali ou para me esconder mais, ouvi a moça dizer:

- Eu disse que ainda vamos nos conhecer, Abby, minha queridinha... - e então tudo congelou.


#3
31 de dezembro de 2014

Eu beberiquei o café com cuidado, e me recostei na poltrona da cafeteria. Era um bom lugar para matar o tempo, se você gostasse desse tipo de coisa. Sabe como é - paredes de vidro, funcionamento 24 horas e café tinta. Tentei não cuspir o conteúdo de volta na caneca.

Li e reli aquele bilhete tantas vezes que estava quase furando o papel, mas continuava fitando-o. Eu sempre fui cética, sabe como é? Nunca acreditei nesse tipo de coisa, nem deixei que me fizessem acreditar. Fui sempre muito religiosa ao niilismo. Mas isso era completamente diferente. Ela fazia ser completamente diferente. E era impossível não acreditar.

Enxuguei uma lágrima do olho e funguei. Era um choro feliz, na verdade. Dei uma risada baixa. Isso era absurdamente típico dela. Dobrei com cuidado o papel e enfiei no bolso, peguei uns trocados e coloquei sobre a mesa. Saí em direção à praia, que estava alaranjada pelo sol nascente.

As palavras ainda tocavam na minha cabeça:


"Abby,

Sempre disse que te deixaria meu coração, para que você aprendesse a amar como se o mundo estivesse acabando. E agora você entende o quão séria minha promessa era.
Ele pode não pulsar, nem fazer tum tum, mas dentro dele você vai encontrar tudo o que precisa para vencer seu medo. Minha coragem e minha esperança. E quem sabe um dia desses não estarás se entregando a alguém como se fosse a única coisa que pudesse fazer? Quem sabe soltarás um suspiro!
Eu acredito nisso e acredito em você. Sempre acreditei. E é por isso que afirmo: essa não será a última vez que nos falamos. Porque afinal, eu sou seu anjo.
Te vejo do outro lado,
J"

Eu pendurei o cordão com pingente dourado de coração no pescoço, e atravessei a rua. Meu celular permaneceu em silêncio.

2 comentários:

  1. Ninguém ou quase ninguém vai perceber que essa história aconteceu e está acontecendo.
    E até gosto disso, sabe?
    Desse gostinho de que ela nos pertence. Mas talvez, talvez agora ela pertença a qualquer um que a leia. E apenas as entrelinhas nos pertençam.
    E sejam as linhas ou as entrelinhas, pouco importa.
    O que importa é aquele telefonema vindo do futuro, todos os conselhos...
    E talvez, só me reste apenas dizer algo que talvez nunca disse:
    Obrigada, J. Obrigada mesmo.

    (L)

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    Respostas
    1. Eu comecei a escrever a versão mais realística da história, na verdade. Vamos ver se fica legal XD
      Mas eu gosto do toque dramático dessa :)

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