quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sobre as promessas





“As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem – as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que
isso, não? As coisas mais importantes estão muito próximas de onde o seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem porque eram tão importantes que você quase chorou enquanto estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas por falta de alguém que o compreenda.”

Stephen King



Ela não gosta das meias sensações. Aquela ponta de tristeza e desespero que coçam no fundo do estômago. Ela não gosta de como isso parece uma promessa.

Sempre preferiu o caos. A agonia que toma conta do corpo, que passa rasgando, destroçando e destruindo. De ter o copo cheio de veneno, e não pela metade. Por isso vive sempre na beirada de precipícios.

Dirigiu até lá a 120 por hora. Queria ir mais rápido, mas não queria chegar logo. A cobertura jogada para trás, e os cabelos negros e compridos voando e ricocheteando nas bochechas freneticamente. Parou na beira da estrada da praia, naquele espaço de descanso que sempre vira do banco de passageiro, quando viajava com os pais.

Não se importou em fechar a porta. Saiu, enterrando o all star e a barra da calça, ambos pretos, na lama. A pele era quase translúcida refletindo a luz da lua. Os olhos cinzas miravam a grande piscina de névoa à sua frente, que cobriam a visão das serras. Era uma queda enorme, grande o bastante para imaginar que estava voando.

Ela espiou por um segundo, curvando-se sobre a grande de proteção. E então soltou uma risada nervosa. Aquilo era muito idiota.

Recostou-se sobre o capô do carro, fechando os olhos. Tanto havia acontecido em tão pouco tempo. Tantos pontos finais - alguns, aliás, inesperados - foram postos. Ela sentia frustração por todo seu corpo, como se estivesse falhando com algum princípio pessoal ao se permitir àquilo.

O meio termo era seu pior pesadelo.

Sentiu ela chegando antes de ouvi-la. Ela caminhava, e deixou-se pisar em cima de algumas folhagens secas, que craquelearam enquanto ela se aproximava.

Primeiro sentiu o cheio de seus cabelos. Aquele creme para pentear pesado e doce. Depois, a frieza de sua pele, quando uma de suas mãos a empurrou para o lado, abrindo espaço para que ela também pudesse se encostar no carro. A combinação das duas figuras era sombria. Cabelos negros e cor de fogo se encontravam no ar.

-  Problemas para dormir? - perguntou a ruiva, sem olhar para a morena.

- Problemas para acordar? - retrucou a morena, sem olhar para a ruiva.

Ficaram em silêncio por alguns segundos. A morena suspirou.

- Você é muito orgulhosa para falar o que quer. Vá embora - era um tom direto e limpo, como se apenas afirmasse algo muito óbvio.

- Eu sou orgulhosa? E quanto à você? Quando é que vai dizer o que quer? - a ruiva, pelo contrário, soava enfurecida.

A morena virou-se para a outra, estudando sua expressão. Tanto tempo se passara, e seu mal continuava sendo hesitar.  A ruiva não tinha esse problema.

- Foi o que pensei... Então acho que nunca saberemos.

- Eu não tenho mais paciência - cortou, ainda em seu tom desinteressado - acho que fui perdendo aos poucos.

- Explique melhor.

- É disso que estou falando - ela desviou o olhar de novo para a cortina branca de fumaça abaixo delas - eu não tenho mais paciência para me defender de você. De me explicar...

- Defender do que? É você que tem o costume de descontar as tensões da vida nas nossas conversas - ela também virou o rosto - parece até que gosta de puxar briga.

A morena sentiu a onda de frustração novamente, agora mais forte. Ela não tinha boas respostas, ela não tinha bons motivos. Ela não tinha boas intenções, avisara desde o começo.

- Tem razão. Eu puxei briga. Quando contei essa história para as pessoas, fiz você parecer idiota. Se você revivesse a conversa, veria como é idiota. Mas eu estava puxando briga.

- Não tem nada de idiota. Eu não vou ficar calada enquanto ouço um monte de asneiras sobre mim, você não me conhece.

- Mais uma vez, você tem razão.

- Qual é o seu problema?! - ela levantou a voz, irritada, embora não o bastante para que fosse um escândalo.

- Meu problema é que eu não quero mais discutir de quem é a culpa. Eu e você criamos uma coisa frágil, e achamos que duraria tempo o bastante para que estivéssemos satisfeitas. Mas não é assim que as coisas funcionam. Deixamos que se quebrasse há muito tempo atrás.

- Você deixou que se quebrasse! Foi sempre você, não entende? Todas as vezes que caímos, foi sua culpa. Você voltou estranha, da primeira vez. Depois se entreteu demais com a própria vida, e me esqueceu. Você já me traiu, me desamparou quando eu mais precisava...É sempre você! - agora ela falava rapidamente, como se tivesse pensado em todas aquelas palavras muitas vezes.

- Já pedi para que fosse embora - limitou-se a morena.

- É isso, apenas? Vai bancar a covarde?

- Não, eu vou manter uma promessa.

- Do que está falando?

- Todas as vezes em que eu aceitei a culpa por alguma discussão, problema ou merda que aconteceu entre a gente, sem realmente me sentir culpada. Todas as vezes em que eu deixei você se impor na nossa relação... Voltar de todas elas, para seus braços, matava meu amor próprio.

- Amor próprio que eu te ensinei a ter.

- Mas eu lembro de todas as vezes que o contrário aconteceu - ela continuou como se não tivesse sido interrompida -, quando era você que precisava voltar. E por três vezes você disse adeus.

- Aquilo foi...

- Aquilo foi minha promessa, lembra? Eu disse que o dia em que eu desse adeus, seria para sempre.

- Está dizendo adeus?

- Acho que sim.

As duas não se mexeram por um bom tempo. A ruiva não choraria até que saísse dali. A morena não choraria até que saísse do meio termo.

Quando finalmente pode se mexer, a ruiva refez seu caminho, sem olhar para trás. A morena também não observou.

Elas nunca mais se viram. 

5 comentários:

  1. Pq será que eu entendi todo o contexto nas entrelinhas?

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  2. Seus textos estão cada vez mais intensos. Esse, particulamente, é para mim um pesadelo que quero evitar.

    Mas uma música da Hindi Zahra combinaria mais.

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    1. Que pesadelo? Conte-me por e-mail :)

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    2. Ah, usei a música do Kol porque escrevi ouvindo ela. E por causa da letra.

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