quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sobre Maria, Joaquim e Evaristo



(foto de arquivo da família Galvão)



Ninguém da família ouvira falar dele até aquele fatídico dia. Maria juntou as roupas em uma trouxa simples, feita de saco de milho. Não era uma trouxa grande, nem tinha nada a que ela desse muito valor - apenas algumas peças que ela mesma fizera na velha máquina de costura de sua mãe.


Encontraram-se na frente do pé de jabuticaba. Ela chegou quase meia hora atrasada. Ele achou que ela não viria mais, e quase foi sozinho. Beijaram-se rapidamente, no momento em que se viram. Nenhum dos dois era muito romântico, comunicativo, expressivo ou particularmente intenso. Era um casal de segurança, algo que o universo unira para salvar duas vidas, quando duas almas já haviam se quebrado.

Joaquim jogou a trouxa de Maria dentro de sua bolsa de velcro. Carregava algumas roupas, um pente e um pote de óleo para cabelos. No suporte, que carregava nas costas, vinha sua viola. Talvez aquela viola tenha sido usada para tocar canções de amor para Maria, mas naquele momento estava em silêncio, envolta em couro.

Não planejavam ir para longe, apenas para fora de alcance. Maria deixava para trás seus seis filhos - a mais velha com quatorze anos e a mais nova com dez - e o marido.

Casara-se quando tinha apenas quinze anos, o que na época era completamente normal. Usou branco na cerimônia, afinal era virgem. Não conseguiu apertar o pé trinta e cinco dentro do sapato trinta e três que fora de sua mãe, usou apenas uma sapatilha. Como não sabia escrever, nem assinar seu nome, carimbou o dedão na ata da capela. Evaristo, seu marido, sabia ler. Assinou seu nome. Usou terno completo. Passou gel, não óleo, no cabelo. Foi o último dia em que foram felizes juntos.

No passado, ele havia cortado os pulsos quando achou que Maria não o amava. Fez isso e mostrou a ela, que se comoveu. As famílias aprovavam a união. A cidade aprovava a união. Maria, então, também aprovou.

Os cortes, porém, deviam ter servido de aviso para Maria. A violência era latente nos instintos de Evaristo. E, embora ela não tenha sangrado na noite de núpcias, sangrou muitas vezes depois. A primeira vez que ele chegou bêbado em casa, com a garrafa ainda em mãos, é uma das memórias mais fortemente impressas em sua mente. Ele urrava. Maria não entendia e apenas se encolhia. Pegou-lhe os cabelos e prensou sua face contra a parede de tijolos laranja. Não parou de esfregá-la até que Maria parou de gritar.

Vieram os filhos e vieram as filhas. Veio a luz, a televisão, o forno à gás, mas o ritual era sempre o mesmo. Em dia de álcool, Maria preparava o espírito e esperava que o corpo terminasse de sofrer a absolvição de seus pecados. Às vezes, quando ele estava muito bêbado, quase desmaiando, era mais rápido. Às vezes durava horas.

As crianças não eram poupadas, mas para Maria, aquilo tudo virara rotina. Sentia-se ódio de Evaristo, o sentimento estava tão fossilizado, que deixara de perceber. Também deixara de perceber outras coisas, como o amor. Ele, agora, parecia uma coisa contada apenas em filmes, e repreendia as filhas, se uma delas falasse sobre o assunto.

Quando a filha nova já tinha idade, voltou a trabalhar. Passava o dia debaixo do sol, carpindo. Carpia a terra, a vida, a morte e tudo mais que lhe passasse pela cabeça. Carpia no sol e na chuva. Carpia até os braços doeres, e continuava a carpir depois disso.

Foi quando ela, a filha mais nova, completou dez anos que as coisas mudaram. Para Maria, sexo era apenas algo que ela devia ao marido. Não era prazer e não era entrega. Era uma dívida. Era algo que ela precisava fazer para que o mundo continuasse mundo. Para que houvesse filhos. E netos. E bisnetos. A maioria homem se pudesse ter algum controle sobre isso. Mas aí tudo mudou.

Chegou em casa de tarde, antes do sol se por, e a menina estava na sala. Sozinha. O resto das crianças estava na casa da avó, mãe de Evaristo. A pequena também deveria estar. Estava assustada. Encolhida. Tinha manchas de lágrimas no rosto. Embora tivesse levado um tempo para que Maria reagisse, o entendimento a atingira como uma bala de revólver. Certo, reto, rápido.

Descobriu, depois, que além de estuprar a pequena, o marido também havia atirado, com a espingarda, nos dois filhos mais velhos. Pura sorte, ou pinga, as balas não terem acertado.

E então surgiu Joaquim.

Não para Maria. Para ela, quem sabe, ele já estivesse presente há muito tempo. Para todo o resto do mundo, porém, era a primeira vez que era mencionado. Ele era como ela - solitário dentro de uma família muito grande. Cansado e calejado demais para cuidar de qualquer pessoa além dele mesma.

E então se foram. As mãos não estavam dadas, porque não tinham carinho. Tinham apenas segurança, e um ao outro, para qualquer situação que requeresse um par sobressalente de mãos ou pés. De vez em quando, também calor humano, lábios e outras coisas mais.

Por terem vivido tanto tempo em terror, aprenderam que as pessoas só sobrevivem até o ponto em que podem cuidar de si mesmas. E foi por isso, também, que Maria não soube lidar com a situação quando Joaquim, com quase oitenta anos, teve um derrame e ficou com cinquenta por cento do corpo paralisado.

Não o levou para casa. E não segurou sua mão enquanto ele morria deitado na cama suja do hospital público daquela cidade do interior.

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