sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre a arma quente


- republicado do meu antigo blog, o Contraste Criativo.
escrito em 03/02/2012



Aiden estava se afogando em escuridão quando Aileen o puxou pela mão. Eram irmãos gêmeos, embora só tivessem se conhecido aos dezesseis anos, quando estudaram na mesma escola. Não me entendam mal, não tinham parentesco algum, mas se algo os define bem, é a relação de um irmão e uma irmã, quando dividem o mesmo útero e a mesma fonte de vida por tempo demais.

Ele era de longe. De onde, exatamente, não sabia dizer, já que vivera a maior parte de sua curta vida viajando atrás da mãe. Conheceu Limerick quando ela se casou. Donegal quando se divorciou. E Galway, quando fez o aborto. Parou em Kildare, na vila ironicamente batizada de Kill, quando ela resolveu passar dessa para melhor, se enforcando no banheiro. Mudou-se para a casa da avó, de quem nem o nome sabia até meses atrás.

Ela era de lá. Nascera e crescera em Kill, e conhecia quase todas as duas mil pessoas que viviam por lá. Andava de cavalo quando queria pensar, quando não tinha nada para fazer, quando estava agitada e quando precisava treinar para a corrida. Também participava dos encontros do conselho e gostava de opinar sobre as várias inadequações descritas na ata de criação da vila. Gostava, aliás, de opinar sobre tudo.

Viram-se no segundo em que ele pisou em Kill. Ele, quase urbano. Ela, quase parte da paisagem. Não faziam ideia de que já se conheciam e tinham um ao outro impregnados na alma.

Aiden visitava o cemitério da cidade com mais frequência do que era saudável, levando em consideração que não conhecia ninguém ali enterrado. Aileen visitava a avó uma vez por semana e trocava as flores roxas secas que enfeitavam a lápide.

- Está zombando dos mortos, zanzando entre as lápides - ela finalmente disse, embora estivesse pensando em algo completamente diferente. Pensava em como a tristeza emanava da pele de Aiden e como as trevas pareciam circular em volta dele, saindo de suas narinas como fumaça de cigarro. Ele devia ser o demônio.

- E isso é problema seu? - ele não hesitou ao responder. Não tinha receio de ofender ninguém, muito menos desconhecidos. Sua paciência era reservada para lidar com seus próprios problemas, com suas próprias lutas internas.

Mas ela viu. Ou pensou ver. Algo mudara nos olhos de Aiden. Foi breve, mas perceptível. Ela vira como ele ansiava por atenção, após (quem sabe) anos em silêncio. E Aileen resolveu salvá-lo.

Ele amava as trevas, mais do que podia imaginar ou entender, mas aceitou a mão dela do mesmo jeito. Ela o puxou para cima, para a superfície, para a realidade. Transformou sua luz em uma corda e amarrou em torno dele, não deixaria que se perdesse novamente.

Ela queria saber de seus pesadelos, de seus traumas, defeitos e erros. Ela queria saber de tudo. E queria contar tudo também.

Às vezes era tanta informação que ele precisava se afastar, olhar para a solidão, fumar um cigarro, cortar os pulsos. Mas no dia que ela precisou de solidão, ele não soube lidar muito bem. Foi um dia de várias primeiras vezes.

- Não pode fazer isso comigo! Não pode me tirar de dentro de mim mesmo e me deixar sozinho! Você prometeu! - ele dizia entre dentes e ódio. Ele nunca parara para pensar em como era bom em machucar, como era bom em causar dor.

- Eu prometi. Eu prometo! - ela dizia, segurando suas mãos contra a vontade dele - Eu juro que estou aqui, que não vou te deixar sozinho. Vou estar sempre por perto, entendeu?

A garota, que tinha os olhos cor de mel, sabia tudo sobre pessoas quebradas. Como elas não entenderiam nada além de sua própria dor, como sugavam sua vida e não davam nada em troca. Como você simplesmente se apaixonava por elas e não conseguia mais se distanciar. Tornava-se responsável por sua dor e sua alegria. Estavam atados por sua vida, afinal de contas.

Por isso pessoas quebradas são perigosas. Elas sabem que podem sobreviver.

E então Aiden melhorou. Deixou de visitar cemitérios, deixou de se cortar, de fumar, de escrever planos sobre sua própria morte. Deixou de queimar com o isqueiro as plantas do jardim de sua avó. E, com a dor, foi-se também a intensidade. Seu amor não machucava mais, era apenas carinho.

Desatou a vida de Alieen de sua cintura. Achou que era hora de viver com sua própria luz e de deixá-la aproveitar a dela. Seriam eternos, pois conheciam o melhor e o pior um do outro. Pelo menos era o que achava.

Mas Aileen criara um hábito, um vício. Sentia-se vazia e infeliz cuidando de si própria. Não tinha à quem entregar sua energia, não tinha ninguém para salvar. Estava perdida em sua própria falta de trevas, e isso lhe parecia absurdo.

Aiden tomara dela tudo o que ela já fora, exigira toda a sua atenção, cuidados e inteligência, e agora podia existir sem ela. Era isso que significa se entregar à outra pessoa? Era isso que ela ganhava em agradecimento? Sentia-se como um pedestre que é atropelado e deixado para trás, sem ajuda do motorista.

O garoto saiu de Kill. Foi estudar em Galway. Nunca fora sua intenção se prender àquele lugar. E, alguns meses depois, ela bateu na porta de seu dormitório.

Ele nem pode dizer oi.

- Você não me conhece mais. Você costumava saber tudo o que acontecia comigo, costumava saber o que eu estava pensando e o que você representava para mim. Agora você não sabe nada. Não sabe quem são meus amigos, qual meu trabalho, meus gostos e meus desgostos... Você foi embora.

Ele treinou aquela conversa em particular várias vezes. Sabia que aquilo aconteceria cedo ou tarde. Mas agora que a hora chegara, não sabia o que dizer...

- Aileen...

- NÃO! É minha vez de falar. É minha vez de apontar meu dedo para você e dizer que você falhou. Você foi embora e me deixou sozinha. Depois de tudo o que eu fiz por você. Eu te salvei, Aiden. Eu salvei a sua vida! Eu te transformei em uma pessoa!

- E eu sou eternamente grato por isso, mas...

- Você não entende? Eu te ajudei quando você precisava e quando sou eu quem precisa, você some! Você não me ama mais... - os gritos se transformaram em suspiros e ela estava chorando.

- Eu te amo. Você é a pessoa que eu mais amo no mundo. Você é a única pessoa que importa, não entende? Mas você estava me prendendo...

- Como ousa dizer isso?! Eu te tirei da escuridão, salvei a sua vida quando ninguém nem lembrava que você existia!

- Eu não precisava ser salvo, Aileen. Eu nunca precisei. Eu me apoiei em você porque parecia o certo a fazer, mas eu vou ter sempre escuridão dentro de mim. Eu sei viver com ela, eu sei viver comigo mesmo.

- O que você está dizendo? - sua expressão havia mudado, ele cutucara algo dentro de si que começara a sangrar.

- Estou dizendo que não preciso de você...

Ela não deixou que ele explicasse. Abriu a bolsa, sacou a arma e atirou, sem mirar. A bala atingiu a coxa dele. Aiden ainda conseguiu empurrá-la pelo corredor. Ela rolou a escada e quebrou o pescoço.

Quando os policiais chegaram, a arma, caída no chão, ainda estava quente.

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