domingo, 16 de maio de 2010

Sombras de Belle Meade


Escrito em parceria com a Ágda Santos, do blog http://papeldesemica.blogspot.com/


Já era noite quando despertara com uma forte dor na cabeça. Os sentidos bagunçados não lhe permitiam localizar-se. A respiração descompassada nada lhe ajudava. A todo custo pôs os pés para fora da cama. A dor então foi amenizando, a respiração voltando ao normal. Tateou em busca de seu criado-mudo onde costumeiramente deixava seus óculos.
Encontrou o copo com água, maço de cigarros, o porta-retrato que sua filha lhe dera, um jornal amassado e enfim seus óculos. Colocou-os e caminhou até um pequeno banheiro que ficava logo à frente. Algumas baratas se escondiam à medida que ele avançava até a pia encardida.
Ligou a torneira e esperou que a água enferrujada acabasse de sair, em seguida molhou a nuca e sentiu a velha cicatriz de 1945.
Voltou para a cama, mas sabia que não voltaria a dormir. Era um ritual até o amanhecer. Agora só restava continuar.

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Nenhuma luz fora acesa no local, mas enquanto observava de fora o segundo andar da velha mansão Belle Meade, ela sabia exatamente em que coordenada ele se encontrava, e o motivo que o fizera sair da cama.
Tinha as mãos nos bolsos fundos e o pescoço encolhido junto à gola do casaco pesado e preto. O fato não lhe chamava a atenção, mas seus cabelos, normalmente alinhados, brincavam no ritmo do vento pelos arredores de sua cabeça.
Seus olhos, ouvidos e nariz mantinham-se atentos. Sua mente, porém, vagava até a dele.
Era uma noite como qualquer outra. Mas se pudesse, a faria diferente.

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Voltou para perto da cama, pegou o velho jornal e vestiu um roupão surrado. Caminhou até uma pequena cozinha, serviu-se de
café amargo, há duas semanas que não sabia o que era doce. Há 65 anos não sabia o que era ter uma vida doce. Abriu mais uma vez o
o jornal para ver a imagem da mulher que transfigurara sua vida. Mais uma vez passou a mão na cicatriz. Recortou a foto do jornal
e a colou numa parede proxima junto com centenas de outras fotos. Todas acompanhando o envelhecimento e enriquecimento de uma
única mulher.

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Seu corpo permaneceu tão intacto quanto sua sanidade permitira. Se um fator não dependesse do outro, não estaria naquele lugar, plantada em uma única posição durante longas horas. Não percebeu quando o frio começara a machucar a pele de seu rosto, criando um choque entre a sua palidez e a cor avermelhada do sangue que ainda corria em suas veias.
Depois de tantos anos, ficaria levemente surpresa se tivesse conhecimento desse seu reflexo. Porém, a única sensação que permanecia em sua tela de consciência era a necessidade.
Movida por ela, andou em direção à casa.
Era sua eternidade, mesmo que só 65 anos tivessem se passado.

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Alex estava cansado pelo rumo que sua vida tomara, não suportava mais o próprio ar que respirava. Olhou pela janela embaçada
e viu uma luz na mansão acessa. Como em todas as madrugadas, era ela. Um meio sorriso tomou conta de seu rosto. Toda a dor poderia cessar se ele decidisse pegar o carro e atravessar a plantação de girassóis. Tudo poderia mudar em apenas algumas horas. E então a luz distante apagou-se. Seu semblante tornara a desanuviar-se. E com o cantar dos galos toda a dor escondia-se dentro do peito.

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Era lei dos caçadores, nunca encurralar uma presa quando não se pode adentrar sua toca. Ela pode morrer de fome, mas não morrerá por suas mãos.
Esse fora seu primeiro erro.
O segundo, aparentemente, fora o instinto humano.
Nos poucos segundos gastos na aproximação de seu antigo lar, despiu-se de seus próprios princípios. Era um animal faminto, instigado pelo cheiro de carne fresca e ensaguentada.
Lillian abriu as portas, subiu as escadas, passou por suas fotos - que formavam uma linha do tempo pela sua sobrevida. E, finalmente, encarara sua tão sonhada presa.

- É hora, meu filho.

...E devorou-lhe o coração.

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