quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sobre as quedas de abismos



Escrito por Juliana Cimeno e Lyvia Jardim


Eu não fazia ideia do caminho, essa era a verdade. Minhas pernas começaram a falhar mais ou menos uma hora depois que comecei a pedalar. Se tivesse ido mais devagar, teria aguentado mais, mas não teria aproveitado o vento no cabelo. No fim, o vento no cabelo sempre vencia qualquer batalha interna.

Não era outono ainda, mas o caminho já estava cheio de folhas e as árvores pintadas de amarelo. As beiradas da trilha estavam forradas de musgo e a neblina começava a dançar por entre as raízes. Os últimos raios de sol tocavam minha pele como um aviso. Ou uma oração. Eu tinha dúvidas quanto ao significado.

Acelerei os últimos metros, antes de entrar em um campo aberto. Imenso. Assustador. Vazio. Eu tentei descrever o campo depois, mas nunca senti que fazia jus àquela visão. Se eu continuasse em frente por um tempo, voltaria para a floresta, se eu voltasse alguns passos, também. Mas era o campo que me interessava - ele se estendia para a direita até que os olhos se perdessem, mas do lado esquerdo, ele acabava logo ali, há alguns metros de distância. De onde eu estava, tinha a impressão de que era a beirada do mundo. O fim. Soltei a bicicleta com cuidado, puxando a máquina fotográfica lá de dentro.

Eu esperava estar ofegante, ou pingando suor, mas talvez aquele lugar fosse mágico, pois só me sentia corada. Meus passos até a beirada liberavam um tipo de poeira branca pelo caminho. Quando prestei mais atenção, percebi que eram flores dentes-de-leão. Um campo inteiro de dentes-de-leão. Click.

E eu estava na ponta. Pronta para saber o que tinha lá embaixo. Para matar minha fantasia de que aqui, nesse mesmo ponto, o mundo acabava. Que eu saberia exatamente para onde correr quando as coisas ficassem complicadas demais. Fins descomplicam tudo, todo mundo sabe disso.

Mas, ao invés disso, eu fechei os olhos.

Logo, estava rodopiando. Rodopiava a esmo, tal como Alice, que em sua intrépida perseguição ao Coelho Branco, tamborilou por um buraco que abriu-lhe as portas para o País das Maravilhas.

Quando toquei o chão, porém, não me vi diante de portinhas ou frasquinhos e sim, com paredes brancas, brancas cor de gelo, brancas cor de quarto residencial, brancas cor de escritório. Enfim, paredes brancas.

A sensação que tomou conta de mim me dizia que eu estava dentro de uma caixa.
Uma caixa onde eu era o objeto a ser guardado e contemplado. Um tesouro, uma relíquia, uma peça diferente de um tabuleiro onde eu ainda não sabia quais eram os jogadores.

Curiosa, aproximei-me de uma das paredes. Toquei-lhe a superfície com a palma do polegar e carimbei minha digital.

Logo, lá estava ela.

Pequena, definida, um círculo ínfimo naquela imensidão branca.

Pisquei e a pequena bolinha - minha digital - se desfez.

Em seu lugar, um risco tomava forma, um risco que envolveu, pouco a pouco, a parede branca.

Arabescos apareceram, primeiro num tom azul anil, depois converteram-se em uma tonalidade violeta e por fim, a outrora "tela em branco" dera vida à riscos de uma coloração terrosa.

Me pus a pensar. Pensei, pensei e pensei.

Poderia ter pensado por anos, mas como num clique, lembrei-me que aqueles arabescos eram idênticos ao domo de uma igreja que frequentava com a minha avó na infância, quando ainda passava as férias em Pirassununga.

Dizem que ali era a terra da pinga, mas para mim, aquele local tinha cheiro de infância e tachos de marmelo que minha avó fazia.

Ela sempre me levava à igreja. Eu achava chato, mas a acompanhava por respeito de neta.

Ou, porque ainda não sabia, procurava dentro de mim mesma as respostas para infinitas perguntas, muitas delas, as quais, ainda nem respondi.

Nostálgica, voltei-me para a outra parede.

Com o indicador, escrevi um "L".

Não "L" de lealdade, "L" de luz, "L" de lírio.

Mas sim, "L" dele, "L" de Leandro.

Leandro foi o meu amor não resolvido da juventude. Crescemos como amigos, como enamorados e como amantes. Terminávamos e reatávamos, num frenesi rítmico, quando Leandro, assim como muitos outros personagens do meu livro de memórias, se foi. Conheceu Carolina e estão noivos e à espera de sua primeira filha.

Contudo, dentro de mim, preservo Leandro como o doce e educado rapaz que um dia conquistou meu sorriso, meus bons sentimentos e minha virgindade.

Assim como minha digital na outra parede, logo o "L" teve sua forma transformada.
No caso, transformou-se em um L três vezes maior, que cobriu toda parede e cegou-me a vista. Uma ponta da letra uniu-se à outra e então, um triângulo acobertou minha visão.

Aproximei-me.

Dentro do triângulo, dois bonequinhos palitos faziam movimentos frenéticos, como num ato de cópula.

Ri, marota, frente à constatação de que aqueles pequenos bonecos eram eu mesma e Leandro, num passado que me escapava às mãos.

Talvez representassem a minha eterna busca por uma sexualidade satisfatória, não sei.

Na verdade, não sei por que nos minutos seguintes, antes que me perdesse em devaneios, me dirigi à terceira parede, onde rabisquei um coração.

Segundos transcorreram até que o coração se partisse no meio.

Recordei-me dela.

Iara, nome extraído da mãe da água, foi a minha melhor amiga por toda infância.

Éramos como queijo branco e goiabada, inseparáveis.

Separadas, nos sentíamos boas o suficiente para realizar nossos pequenos feitos individuais. Mas juntas, éramos imbatíveis.

Entretanto, assim como Leandro, Iara se fora da minha vida.

O motivo era realmente torpe: Começara a namorar com Augusto, o rapaz por quem nutria uma paixão desde que descobrira este sentimento e se afastara de mim, das outras amigas e de seu mundo.

Agora, dividia com ele um mundo somente deles, imune à presença de terceiras pessoas.

Porém, mesmo falando com Iara apenas em ocasiões especiais, como aniversários, eu ainda guardava a minha parte de um pingente de coração que ela havia me dado no meu aniversário de doze anos.

Aquela pequena joia era parte do que um dia fomos e tais lembranças eu fazia questão de guardar eternamente,  quer nosso futuro, como jornalistas promissoras, comadres e amigas até o fim da vida, tivesse sido interrompido ou não.

Suspirei.  A quarta parede ainda em branco.

Imaginei o que poderia transpassar para ela, mas antes que movesse um dedo, uma figura apareceu diante de mim.

Era uma velha, com um semblante entristecido.

Seus cabelos estavam tomados por fios brancos e suas sobrancelhas arqueadas.  Não havia nenhum sorriso ali.

Ela, a idosa, me parecia estranhamente familiar. Como se fosse alguma parenta ou, meu íntimo questionou, eu mesma dali muitos e muitos anos.

Aquilo era tão surreal, tão Dorian Gray.

Mas não podia ser verdade. Não podia.

Então, a velha falou:

- Olá! Como vai você?

Saltei de susto.

- Eu? Bem, eu acho... Como você está falando comigo?

A idosa bocejou.

- Oras, eu sempre falo com você.

Fiz um muxoxo.

- Não fala não. Eu sei que não te conheço.

De soslaio, ela me respondeu:

- Conhece sim. Quer dizer, você não me conhece, mas eu conheço você. Eu sou você.

Consenti, desconfiada.

- Daqui a uns sessenta anos, confere?

A idosa sorriu de canto, embora, paradoxalmente, continuasse com o olhar tristonho.

- Não, senhora. Eu sou seu eu interior.  Você pode ser jovem, menina, mas seu interior é de uma velha. Chorar dá rugas, sabia? Olhe para mim! Cada dobrinha aqui da minha face é culpa sua. Afinal, quantas vezes já não chorou por aquele Leandro? Ou por Iara? Ou simplesmente de saudades da sua avó?

Eu ainda estava me decidindo se consentia ou não com aquela estranha, quando ela complementou:

- Deve ser muito esquisito conversar com seu eu interior, não é?

Fiz que sim com a cabeça

- É, é incomum. Mas pensando bem, já devo ter conversado outras vezes com você no silêncio do meu quarto. Decerto já ouviu muitas das minhas dúvidas e muitos dos meus lamentos. Não deve ser fácil para a senhora.

- É divertido, às vezes. Muitas das suas dúvidas são interessantes. Teve aquela vez da sorveteria, em que você queria uma bola de pistache, mas também gostava de crocante e acabou optando por um banana split, porque também se interessou pelo sabor frutas vermelhas...

Ri baixinho.

- Eu sei, sou estranha.

- Como se isso fosse um defeito. Gente normal demais é que irrita. Você pode ser excessivamente chorona de vez em quando, mas na maior do tempo é suportável viver dentro de você.

- Se é tão suportável assim - questionei – porque está aparecendo para mim?

- Seria melhor se eu não me revelasse, então?

- Bom – retruquei – não posso dizer que não é uma experiência inusitada. Mas se eu disser para alguém, quem vai acreditar? A senhora acreditaria? Aposto que não...

- Oras – respondeu a idosa, tirando uma mecha de cabelo da testa – eu não me preocuparia com isso. Eu apareço para muita gente, quando me dá na telha...

Eu ainda não tinha muita certeza do que responder a isso, mas não precisei me preocupar. Antes que eu pudesse formular qualquer réplica, a expressão do meu "eu interior" ficou séria. Os olhos focados em um ponto atrás de mim.

Percebi que fitava um desenho na parede de papel. Um desenho que eu não havia desenhado ou visto antes. Virei-me, dando as costas à versão mais velha de mim mesma, e me concentrei na figura. Era eu. Em todos os detalhes.

Meu vestido de lese creme, o tênis branco, a bolsa magenta de lado, a tiara fina prendendo o cabelo para trás. O mesmo olhar que eu via no espelho, a mesma expressão. Era tão perfeito que eu fiquei sem reação. Senti como se o desenho fosse mais real que eu.

Ela, também, se mexeu. Segurei o impulso de perguntar quem era. Ela era tão eu que me sentiria boba depois.

- Você é curiosa - ela disse, sem rodeios.

- E você, o que é? - eu esperava que sentido da pergunta fosse preservado.

Ficamos em silêncio, nós três, por alguns segundos. A eu mais recente parecia pensar direito do que dizer. Talvez quisesse impressionar. E ela conseguiu.

- Eu sou a garota que pulou da ponta daquele abismo há alguns minutos atrás.

- Como assim? Achei que ela fosse o "eu interior".

- Ela é sim. Eu sou outra coisa.

A conversa não parecia estar evoluindo e eu começava a me sentir estranha.  Um frio na base do meu estômago me alertava de que havia algo errado. Olhei em volta, pensando em dar o fora dali. A velha percebeu:

- Não precisa ter medo, menina chorona. Nenhuma de nós duas pode, ou quer, te machucar - ela dizia daquele jeito que os velhos falam, que faz com que você acredite na integridade deles, mas não me deixou menos ansiosa.

- Sem ofensa, mas acho que já tive o bastante de autoconhecimento por um dia - eu respondi, extremamente autoconsciente dos olhos da outra eu, a mais nova, grudados em mim o tempo todo, como se esperasse a hora certa de falar algo. Parte de mim queria que essa hora chegasse, parte queria a segurança da ignorância.

- Esse lugar é a forma como sua mente imagina o nada. Sair daqui é uma decisão sua - continuou a velha.

- Tomei essa decisão há alguns segundos atrás, e ainda estou aqui - repliquei um tanto aborrecida.

- Pelo jeito não foi uma decisão forte o bastante - ela provocou - Vamos, olhe para ela. Ouça o que tem a dizer. Quem sabe não é proveitoso.

E eu olhei. Era tão estranho ver minha figura assim, movendo-se sem meu consentimento. Evitei virar a cabeça, como um cachorro curioso. Ficamos em silêncio por algum tempo. A outra eu esperava que eu estivesse pronta.

Ela estendeu a mão. Não era como ver um filme 3D. Era real. Um braço agora crescia da superfície lisa da parece. Na palma da mão dela havia um papel cor-de-rosa cuidadosamente dobrado. Me adiantei, mas ela deteve a minha mão com as dela.

- Isso tudo pode parecer lindo e encantador, mas os fatos ainda são os mesmos. Não quer saber porque eu pulei de um abismo?

Eu hesitei. Desviei os olhos. Nunca fui muito boa com esse lance de olhar nos olhos, ver a verdade por trás do brilho desafiador da outra pessoa. Sempre preferi olhar os pés.

Puxei o papel, desdobrei e li. Tive de ler algumas vezes para que as palavras se tornassem entendíveis no meu cérebro, eu estava um pouco distraída.

"Abrace a solidão"

E eu estava chorando. Chorando alto, chorando escandalosamente, chorando aos soluços. Tapei minha boca com as mãos, como sempre fazia, para que o som não fosse muito longe. Mas naquele lugar aquilo parecia não importar.

Eu era a garota que tinha tanto medo de solidão que, no meio do meu próprio nada, não queria ficar sozinha. Minha visão estava embaçada pelas lágrimas que não paravam de cair, mas podia ouvir as duas falando juntas. Repetiam palavras e gritavam, hora uma com a outra e hora comigo. Tudo à minha volta começava a ficar abstrato.

"Menina chorona"

- Eu não quero ficar sozinha!

"Não quer saber o por quê?"

- Eu não quero ficar sozinha!

"Só sabe chorar"

As vozes se misturavam e soava alto à minha volta, eu tinha a impressão de que as paredes estavam se aproximando. Levei as mãos aos ouvidos e gritei um "não" que não parecia sair de minha garganta, mas de todo o meu corpo.

Quando terminei, soltando os ombros e deixando os braços penderem ao lado do corpo, tive de respirar fundo várias vezes para recuperar o fôlego.

Eu estava de volta à beira do abismo. Minha câmera pendia presa pela correia ao meu pescoço. Minhas mãos tremiam. Dei mais um passo.

Era o abismo mais alto que já vira na vida. Não que tivesse visto muitos abismos. Parecia alto o bastante para me separar de tudo e de todos. Click.

Voltei para a minha bicicleta, guardei a máquina e pedalei para longe do campo. Mais tarde, naquele mesmo dia, encontraria um papel cor-de-rosa, cuidadosamente dobrado, dentro do bolso do meu vestido. Nele, nada haveria escrito.

Aprender a não ter medo da solidão não era uma lição fácil de aprender.

3 comentários:

  1. Se pular do abismo fosse algo tão belo e fácil assim...

    Eu adorei o diálogo e o cenário. Adorei tudo. Achei fascinante!

    Eu deveria dizer: "parabéns, gurias!"

    Mas o melhor pra mim é: Obrigada por essa leitura. Escrevam mais! Escrevam mais!

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    1. Eu já ouvi algumas frases como "odiar é fácil, o difícil é amar", "morrer é fácil, o difícil é viver" e assim por diante.

      Eu acho todas elas bem erradas. É tudo difícil. Pular e não pular.

      O interessante é contemplar a ideia ;)

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  2. Legal ler durante a greve dos rodoviários aqui.

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