quarta-feira, 26 de junho de 2013

Sobre a última aventura de férias

do filme "Conta Comigo" - um dos meus preferidos


Ler ouvindo a trilha sonora de "Conta Comigo".


Para explicar os acontecimentos daquela tarde de férias, uma das minhas últimas férias da escola, aliás, é preciso relembrar do começo. Tudo começou como "tudo" geralmente começa: com uma história. Minha avó era cheia de histórias naquela época.

Eram os idos de 1995, e o tipo de tecnologia que eu tinha disponível na minha vida não era o bastante para me entreter, como hoje. Uma das minhas coisas preferidas no mundo era ouvir histórias, fossem elas verdadeiras ou lidas de livros. As da minha vó eram sempre verdadeiras. Ou pelo menos era o que ela dizia.

Ela passara a maior parte de sua juventude morando em um sítio, no interior da cidade de Suzano. Suzano, no caso, não era a cidade cinza e esfumaçada que é hoje. Antigamente, ela era verde, com estradas de terra, e cheia de mistérios. Ela chamava o lugar de "sertãozinho".

Lá no sertãozinho, muitas coisas eram normais. Coisas que, para qualquer outra pessoa, faziam parte de filmes e livros de suspense e terror apenas. Temer alma penada, por exemplo, era sinal de esperteza. Essa história de que as pessoas vivas são as únicas que podem te machucar só apareceu muito depois, quando todo mundo passou a saber o nome de todo mundo, e mais nada de relevante.

No caso da minha avó, o medo era do Saci. Ela dizia que as lendas eram outras e o costume, na sua época, era deixar oferendas para os santos. De vez em quando, uma ou outra entidade arteira pegava essa oferenda, e aí era uma confusão só. O Saci, em especial, era louquinho pelo café que ela deixava para São Benedito.

Pois bem, em 1995 ou algo parecido, eu era pequena o bastante para deixar a minha curiosidade me guiar, e grande demais para acreditar em tudo. Mas se sua vó diz que é verdade, você acredita. Pelo menos eu acreditava.

E nas tardes que passava com ela aprendia sobre esse tal de Saci, que não era necessariamente um moleque de uma perna só, mas um ser poderoso que poderia trazer muita desgraça se ficasse nervoso. Também aprendi sobre a mula-sem-cabeça, o boto cor-de-rosa, sobre maldições jogadas em famílias inteiras, sobre o significado de sonhos e a utilidade das ervas para curar doenças ou livrar a casa de más energias.

Dez anos depois, minha avó já não dava mais café para o São Benedito. Minha tia se convertera à igreja evangélica e não permitia mais a imagem de santos - ou de nossa senhora - dentro de casa. Minha mãe insistia em me dizer que alma penada não existia.

Mas eu, também, era de outra época. E me recursava a sair daquele mundo em que tudo, ou quase tudo, era possível. Foi assim que virei o que as pessoas chamam de "criança grande".

Acho que já era 2006. As últimas férias escolares livres, sem pensar em vestibular ou trabalho. E eu e mais dois amigos, tão famintos por aventura e fantasia quanto eu, resolvemos sair em uma exploração.

E foi aí que tudo aconteceu.

A gente não planejou direito, devo dizer. Era uma tarde de verão típica. O que, por si só, já devia ter sido informação o bastante para nos avisar que: 1) a estrada estaria MUITO quente e 2) um toró sem igual podia cair a qualquer momento.

Enchemos a mochila de coisas para comer e beber e seguimos pela linha do trem, que era desativada a partir de César de Souza. Ou era o que pensávamos.

O caminho, por si só, já era difícil o bastante. Caminhar entre as tábuas desiguais da linha exigia concentração e certa coordenação motora. Além disso, nós três usávamos tênis All Star e podíamos sentir a temperatura e forma exatas do chão através da sola.

Os primeiros metros correram rapidamente, embalado por conversas. Nós não éramos qualquer tipo de amigos - éramos um trio. Um trio preparado, principalmente, para entrar em encrencas e se meter em furadas.

Antes que as árvores pudessem acabar, a trilha ladeou o que parecia uma pequena vila de casas. O lugar não era particularmente povoado, mas não era deserto. Um garoto surgiu do nada - era pequeno e tinha a pele avermelhada pelo sol. Suas roupas estavam sujas, como a de uma criança muito arteira, que passa o dia todo na rua, brincando. Ele estava descalço.

Era o único por ali. Pelo menos era a história que o silêncio nos contava. Ele nos encarava sem rodeios.

Por algum motivo, apertamos o passo. O olhar que o garoto nos lançava não era amigável. Era desconfiado, gelado e atento, como se guardasse o território.

Olhei para um dos meus amigos, o que tinha mais facilidade em sentir as energias de um lugar ou uma pessoa. Acho que ele sentia o mesmo que eu.

E a sensação era a de ter entrado no set de gravação do filme "O Albergue". Eu podia sentir o cheiro de sangue. Ou talvez fosse de terra vermelha. E eu podia sentir o cheiro de carne podre. Ou talvez algum bicho tivesse caído morto ali perto. Eu também sentia uma energia gelada, que é característica de locais onde coisas ou seres morrem. Não havia alternativa para aquela sensação.

Ultrapassamos o limite da vila e prosseguimos, agora expostos ao calor direto do sol, deixando as sombras das árvores para trás, junto com o garoto que ainda olhava em nossa direção.

Naquele ponto, o trilho do trem tomava altitude. Estávamos no topo de um morro escorregadio e seco, sem trilhas de descida à vista. Aquilo não teria sido um problema, não fosse pelos raios que começavam a quebrar bem próximos àquele ponto.

Estávamos quase correndo. Já não falávamos mais. Percebíamos que aquilo era uma bela de uma má ideia, mas já havíamos avançado demais para dar meia volta. A cachoeira, nosso destino, devia estar perto. Bem perto.

Foi então que as primeiras gotas caíram. Não eram gotas finas, daquelas que avisam sobre o começo da chuva. Era um temporal inteiro. Corremos mais, sem a menor ideia do que deveríamos fazer.

Já estávamos completamente encharcados quando um dos meus amigos avistou um buraco seco, grande o bastante para caber nós três. Entramos sem a menor hesitação, deixando que nossas roupas encharcadas nos jogassem no chão.

Recuperei o fôlego e tirei o cabelo molhado de frente do rosto. Já era a terceira hora de caminhada e não seria inteligente voltar. Deveríamos ficar ali até a chuva passar, depois retomar a caminhada. Em meia hora, no máximo, chegaríamos até Sabaúna. E então seria apenas cinco minutos até a cachoeira.

Esse plano, obviamente, não deu certo. Porque nesse mesmo segundo ouvimos um barulho estranho, vindo do fundo do buraco.

Naquele instante, me senti ligeiramente burra por não ter percebido que  aquilo não era um buraco qualquer, desabitado. Era uma toca. A casa de alguém. Ou melhor, de alguéns.

Uma criatura enorme nos encarava, protegendo outras criaturas menores, suas miniaturas. Seus filhotes.

Ao que tudo indicava aquilo era um javali. O que era absolutamente impossível, já que não haviam javalis ali, naquela cidade.

O javali-mãe urrou quando viu que finalmente percebíamos sua presença. Não era um urro amigável. Era assustador e mandava uma mensagem muito clara: vou comer a cabeça de vocês se não derem o fora daqui e deixarem meus filhotes em paz.

E foi bem o que fizemos. Acho que nunca corri tanto na minha vida. Ou gritei. Quando paramos, vários mil metros à frente, senti gosto de sangue na garganta.

A chuva, pelo menos, começava a passar, e já nos deixava caminhar sem morrer afogados.

Tomamos esse desafogo como um presságio de que a sorte estava mudando. Finalmente uma trilha bem demarcada surgia no morro. Poderíamos chegar à estrada e nos proteger do sol e da chuva, embaixo das copas das árvores.

Eu fui a primeira a pisar na trilha. Tive cuidado, pois o chão, além de molhado, também era coberto de musgo. Eu não tive a chance de escorregar.

Logo à minha frente, várias cobras se entrelaçavam, cobrindo a trilha.

Brequei imediatamente, abrindo os braços para deter meus amigos, que vinham logo atrás de mim. O movimento deve ter sido muito abrupto, pois ambos colidiram às minhas costas, me jogando direto para as cobras.

Caí com uma das mãos em cima da cabeça de uma particularmente grande. Era verde, e eu tinha certeza de que ela me mataria naquele mesmo instante.

Nenhum dos dois antas tentou me ajudar. Fiquei estirada naquela posição por alguns segundos, até perceber que estava sozinha ali. Meus amigos estavam de volta à linha do trem, gritando para que eu fizesse o mesmo.

E eu fiz. Mais uma vez, acho que quebrei algum tipo de recorde pessoal de corrida. Dessa vez, sem gritar.

Guardei os berros para os dois. Discutíamos alto, sobre como àquilo era culpa do outro. Também gargalhávamos alto. Tão alto que fazia meu peito doer. O nome daquilo era histeria.

Continuamos pelo trilho, sem qualquer outra opção, e também sem vontade nenhuma de voltar e lidar com os pequenos problemas que havíamos deixado para trás.

E então voltamos ao chão. O trilho desceu direto para uma estrada e nós não pensamos duas vezes. Corremos, felizes, e se me lembro bem, um deles deitou no chão e rolou, feliz de ver e sentir o asfalto novamente.

Foi aí que um carro branco passou por nós. Passou bem devagar, para que pudéssemos ver quem estava dentro. No banco de trás, o mesmo menino que nos observava na vila, aparecia pela frente da janela. Não conseguíamos ver quem dirigia. Ou quem mais estava no carro.

Paramos no meio da rua, enquanto o carro seguia e brecava há alguns metros de distância. Guardei meu grito, mas fui a única.

O carro fez uma curva rápida e voltou em nossa direção. Mas passou reto. Antes que pudéssemos nos sentir a salvo, porém, ele brecou novamente, e fez o mesmo percurso que antes. Quem é que fosse lá dentro, queria que nos sentíssemos encurralados.

E conseguiu.

Antes de entender o que estava acontecendo, antes mesmo de processar qualquer tipo de terror que pudesse nos paralisar, simplesmente corremos. De volta à trilha. De volta ao maldito trilho de trem.

O trilho subiu por metros e metros e metros. Estávamos mais ao alto que nunca. E a trilha que deixávamos para trás era, basicamente, a única que parecia existir por ali.

O fim da tarde começava a manchar o céu de colorido e o sol e o calor já não incomodavam mais. Mas estávamos tão cansados, irritados e assustados - além das roupas molhadas de chuva e suor - que aquilo não pareceu uma melhora. Queríamos voltar ao chão, um lugar para sentar, uma carona de volta para casa. E talvez uma semana só para esquecer o que tinha acontecido.

Como se fosse algum tipo de resposta divina, os trilhos começaram a descer. Já podíamos ver o ponto em que ele nivelava-se com a estrada de terra. E comemoramos.

Cedo demais.

Um barulho distante chamou nossa atenção. Era um chiado. Batidas. Coisas rolando. Não foi até que o chão começou a tremer que entendemos do que se tratava... Tinha um trem vindo.

Não havia para onde correr, a não ser para frente. Para o tal do nivelamento. Para a estrada. E ela estava tão longe. E corremos, como se não houvesse amanhã. O que poderia mesmo não haver, caso não corrêssemos rápido o bastante.

Alcançamos a estrada por um triz, o que parecia ser o "último segundo". E caímos no chão, observando o trem de carga passar por nós zombeteiramente, sem fôlego e energia.

Foi lá do chão que vimos a placa. Estávamos a exatos dois mil metros da entrada de Sabaúna. Tão perto que um pouco da motivação voltou para nossas veias. Estávamos quase lá. Quase na cachoeira.

De dentro de uma das mochilas surgiu uma câmera fotográfica, daquelas quadradas e de qualidade duvidosa. Eu, com minhas pretensões de diretora, tomei a iniciativa e comecei a documentação do nosso fim de jornada.

Coloquei no modo vídeo e apontei a lente para os dois. Um de cada vez contou a sua versão de como as coisas tinham acontecido.

Inevitavelmente, tudo acabou em piada - verdadeiras “found footages” de ataques do pé grande.

Nos distraímos tanto que esquecemos de tudo, inclusive de olhar pelo caminho. Esse, podemos dizer assim, era nosso erro recorrente.

Entre uma gargalhada e outra ouvimos os latidos. E, imediatamente, uma mistura de pânico e conformismo se formou no ar. Ninguém me mexeu - tudo indicava que, se houvessem cães raivosos naquela área, haveria também uma cerca para separá-los dos "passantes desavisados".

Não havia.

E, pela centésima vez naquele dia, pus-me a correr abestadamente. Não conseguia ver quantos cães eram, ou seus tamanhos, ou mesmo imaginar que, talvez, se parássemos de correr, eles parariam de nos perseguir.

Continuamos correndo mesmo quando os latidos desapareceram. Continuamos correndo mesmo quando chegamos ao que imaginávamos ser a entrada de Sabaúna. Continuamos correndo até que alcançamos a civilização.

Nos espalhamos em um banco de ponto de ônibus, com nada além da certeza de que o que acontecera naquele dia nunca seria levado a sério por ninguém além de nós três.

Paramos algumas pessoas que passavam por ali, para saber há quantos minutos estávamos da cachoeira. Cerca de cinco minutos. Coisa rápida. Quase imediata.  Só precisávamos continuar seguindo.

Olhamos uns para os outros e, naquele silêncio sem argumentos, tomamos uma das mais estranhas decisões.

Pegamos o primeiro ônibus de volta para casa, deixando para trás a trilha, os perigos e a cachoeira. Mas carregando nas mochilas e na cabeça a curiosidade de descobrir o que é que nos esperava no fim do caminho.

8 comentários:

  1. Essa com certeza é uma das suas histórias que entraram para as minhas favoritas. Mas pŕefiro a narração ao vivo. haha

    Poréééém, meu coração faltou pular boca a fora nessa narrativa!

    Sensacional, Ju!

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    Respostas
    1. Obrigada \o/

      A narrativa ao vivo é inevitavelmente cômica. Pq eu só me fodo nessa vida, pô XD hahaha

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  2. Javalis? OMG esse detalhe vc n tinha contado, historia tipo Percy Jackson, se é que vc me entende

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  3. Embora a história seja sua, Jules, fiquei com a ideia na cabeça de que a vó saberia ou, ao menos, te contaria o que teria no final da trilha, fosse inventada ou não.
    Já que as histórias de vó são sempre verdadeiras... Bem capaz que ela soubesse mesmo.

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  4. Se vc quiser a gente pode ir um dia nessa tal cachoeira e descobrir.
    De ônibus até Sabaúna.
    Com guia.
    E uma turma de 50 pessoas.

    xD

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