quinta-feira, 3 de março de 2022

sobre conversas na caverna

A maldita caverna de pedra. 
Maldita porque eu sempre acabo aqui, independente do universo. 
Maldita porque nada bom acontece dentro dessas paredes rochosas. 
Só tragédia. 

Tem essa parte da minha cabeça que repensa e remodela e reescreve esse lugar, e toma interesse demais em contemplar o ponto em que as coisas explodem e acabam. 
Tem essa parte da minha cabeça que está sempre aí dentro, vivendo o caos como se fosse cinema. 
Ela está esperando, claro, desde aquele dia. 
Em pé. 

Um pensamento idiota passa pela minha cabeça: coitada da velha, em pé esse tempo todo porque você ficou evitando essa conversa. 
Sim, você evitou a conversa. 
Chama de depressão, de preguiça, de falta de tempo, do que quiser. 
Mas quais outros motivos você tinha pra não deixar esse diálogo fluir? 

Não é medo. 
Medo talvez seja uma palavra forte. 
Talvez não seja todo aquele espetáculo que a gente criou aqui dentro, não é? 
Talvez não soe tão alto quanto imaginamos. 
Talvez não reflita a bagagem toda que você carrega pra lá e pra cá. 
Talvez não cause palpitações, não faça ninguém arfar por ar ou pedir um tempinho pra respirar. 

A verdade é que você espera ser esfolada viva e qualquer coisa abaixo disso vai te deixar desapontada. 

Teve aquele discurso que você fez, sobre o que você diria num círculo de pessoas que tem histórias potentes e interessantes para contar sobre elas mesmas: "Todas as coisas dramáticas que vivi aconteceram dentro da minha cabeça". 

Deixa ela falar, vai que pelo menos vira a próxima música que você vai escrever. 

Ela te olha com aquele olharzinho de senhora indefesa, que já passou da idade de achar que precisa segurar qualquer tipo de comentário. 
Tem gente que chama de demência, eu chamo de liberdade hedônica. 

"Olha o corpo dessa menina, até que é jeitosinho. Cintura fina, quadril largo" ela começa dizendo, como se estivesse falando com uma terceira pessoa na caverna. 

Eu fico em silêncio. 

Aquilo me incomoda e eu sei o porquê. 
Não é uma afirmação limpa, não é algo que leva em consideração o corpo que eu tenho de verdade, ou a definição de "jeitosinho" que ela tem em mente. 
É a distorção de uma realidade para tentar dar valor a um corpo que ela vê como…. não digno. 

Mas ela me ama, então esse corpo precisa se achar nas meias palavras, nas divagações em semelhanças, na sombra do que é, realmente, belo e válido. 

"Só precisava perder uns quilos" é o que ela - ela mesmo, a mulher, a senhora - não fala. 
Mas é o que ecoa de todas as outras, invisíveis, que estão ao seu redor. 

Eu quero dizer que é absurdo colocar o valor ou mesmo desqualificar a existência de alguém baseado em seu corpo ou na constituição de gordura dele. 
Eu quero mesmo. 
Ensaio essa frase. 
Não digo na frente do espelho. 

Porque o que eu falo é, na verdade: "Tenho me cuidado". 
"Não tem cuidado o bastante, se é assim que você está hoje". 
"Tenho ido à hidroginástica 5 vezes por semana" 
"Mentira, hoje não foi. Tá vendo?" 
"Hoje eu tenho terapia". 
"É desculpa, né? Podia ter ido às 7h40" 
"Funciono melhor de noite"
"E a alimentação? Tem que cortar as besteiras" 
"Eu como bem, tenho comido bastante salada" 
"Eu vi esse chocolate que você tem na bolsa" 

Eu vi esse chocolate que você tem na bolsa. Eu vi esse energético com açúcar. Eu vi a balança que não marca seu peso. Eu vi a roupa que você teve que devolver. Eu vi o prato que você terminou. Eu vi o pensamento que você teve. 

Eu. Vejo. Tudo. 

Tem catarata a desgraçada, mas vê tudo. 

Vê até o fato de que ontem, às 18h50, depois de passar um dia todo sem comer nada, pedi uma tapioca de queijo. 

Ela viu. 

Eu senti seu olhar. 

Eu senti o julgamento. 

E enquanto eu engolia aquilo formava uma bola na minha garganta. No meu estômago. No meu peito. 

Virava toxina que queria ser expelida. 
Virava peso, de gordura, de palavra, de sentimento, de pensamento. 
Virava peso. 

Um peso que eu não quero carregar. 

E que faz ela sorrir… toda vez que eu coloco pra fora. 
Mas quando ela sorri…. Quando ela sorri não acaba. 
Porque ela vê tudo. 
E sempre tem a próxima tapioca. O próximo energético. O próximo prato inteiro. 

E eu preciso manter o sorriso ali, preciso manter os dentes dela ocupados. 
Preciso manter a língua seca dela de se mexer e falar. 
Daquele jeito que ela acha que é só verdade e carinho e nada mais. 

"Você, do jeito que é, não vale a pena".

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