terça-feira, 5 de julho de 2011

O Guardião e o Oráculo - Parte Um

Parceria com a Agda Santos, em seus meses aqui em sampa.




"O deus de quem é o oráculo de Delfos não diz nem oculta nada: significa."


(Hermann Diels - Ópera dos Mortos)





Primeira parte

O fogo crepitava na lareira. O vinho já estava pela metade e o sol despontava no horizonte. Dormiram abraçados. As roupas estavam jogadas pela sala, os livros derrubados, velas, flores... A briga tinha tomado todos os cômodos casa.

Lira acordou sem abrir os olhos, pressentia o caos que encontraria do outro lado da consciência e resolveu não se mexer. Sentia um dos braços de Thomas envolver sua cintura com um aperto gentil. Levou uma das mãos à testa. Devia ter bebido mais vinho do que percebera na noite passada. Uma batida compassada acompanhava seus pensamentos, lançando uma sensação desconfortável por seu estômago.

Podia ouvir a respiração profunda dele próxima a seu pescoço – era despreocupada e calma. Recebeu a contragosto os flashes da noite anterior: a divergência nas opiniões, os gritos, o ciúme, um lampejo de raiva, acusações sem fundamento. E, tão logo quando veio, passou. Tudo se transformara em paixão, fogo, e um nível de intimidade que nunca permitira-se sentir. Conheciam o lado mais egoísta e negro um do outro, e ainda assim permaneceram juntos.

A bela epifania teve um fim violento e breve. A dor na cabeça aumentava com mais intensidade do que esperado. Sentou-se, de supetão, jogando o braço de Thomas para o lado. Os olhos aceitando a claridade a contragosto.

Percebeu sua respiração sem ritmo, acelerada, sem poder se controlar. A náusea subia até o topo da garganta. Thomas levara uma mão até seu ombro, dando-lhe uma terna chacoalhada. O efeito desse ato fora um soluço.

Sem que pudesse evitar, Lira sentia sua primeira visão se consolidar. A imagem era clara, e queria que não fosse: Thomas estava no salão que reconheceu como dos Lórien, o chão de mármore negro, o teto alto, um lustre de cristal detalhado. Seus braços abertos, e sangue. Sangue por todos os lados. Quando acabou, sua única reação fora mirar Thomas nos olhos e ordenar “Não irá ao maldito encontro”. Algo naquela sentença dava-lhe a certeza de que a briga da noite anterior ganharia uma reprise, ainda mais intensa do que a primeira.

- Por favor, Tom.

Lira não conseguia olhar nos olhos dele. Sentia que ele não iria faltar ao encontro. Segurava sua mão, sentia a pele quente e o desejo de nunca soltá-lo. Alguns minutos passados em pleno silêncio, Thomas se levantou e começou a arrumar a casa. Desviava sempre que podia os olhos de Lira. Podia sentir seus olhos nele o tempo inteiro. Sabia que a visão iria se repetir até se concretizar, queria poder fazer qualquer coisa que mudasse o foco, mas nada seria válido nesse momento. Os dois seriam punidos pelos deuses.

Ele separou suas roupas para se apresentarem ao clã dos Lórien. Sentia suas mãos suadas. Não podia estar daquele modo, era o guardião do oráculo, deveria passar confiança, mas o que lhe vinha constantemente à cabeça era que ele mesmo a havia corrompido. Sentia-se culpado e aceitaria todas as punições que lhe seriam concebidas.

A viagem para o templo era rápida, mas essa não estava seguindo os padrões. O clima estava diferente, algo úmido estava no ar. Um cheiro que Thomas não conseguia discernir. Uma mistura de incensos, sangue, mirra e outros perfumes raros. Lira estava cada vez mais pálida, parecia prestes a vomitar, mas Thomas sabia que tudo se devia a visão.

Ao chegarem no templo, passariam pelo ritual de purificação. Um monge lavaria seus pés e amarraria um pano branco em sua cintura. Em Lira seria algo mais delicado, com perfumes diferentes e diversos cânticos. Ele se dirigia até o monge quando Lira segurou sua mão e lhe puxou direto para o salão onde se encontravam os Lórien.

- Isso não vai ser necessário. Eles já sabem sobre nós.

Tom não precisava ser dotado de magia para sentir um mau presságio ao adentrar os portões de mármore. A mão de Lira não transmitia calor nenhum à sua, e em seus olhos havia uma expressão que nunca antes vira. Um misto de determinação e agressividade. Reconhecia-a como a expressão no rosto de um guardião, momentos antes de confrontar àquele que ameaçava a segurança de seu protegido.

Sabia que Lira arriscaria qualquer chance de liberdade e retratação por sua vida. Sabia que faria o mesmo por ela. Mas sabia o quão fora da linha haviam chegado.
Lembrou-se de seu pai, abruptamente, e as histórias que lhe contava quando pequeno. Sobre sua raça, e seu objetivo de vida: devia proteger os oráculos. Era um guardião. Imaginou se seu pai sentiria vergonha de seu filho, por deixar as emoções dominarem o futuro de sua protegida.
Deixou que aquele pensamento ecoasse por sua mente. E, com subto choque, percebeu o que a expressão de Lira representava. Puxou-a para si, sem dificuldade, virando seu corpo para que ficassem frente a frente.

- Não me arrependo de te amar - disse sem mais, deixando que seus olhos sinceros entregassem o resto da mensagem.

- Então porque estamos fazendo isso? - retorquiu sustentando o olhar - Porque arrisca nossas vidas, se não pelo fato de buscar a redenção? Julga que cometera um erro, corrompendo um oráculo...

- Se ontem a noite fosse a lembrança de um ato de pura luxúria e descontrole, estaria correta...Mas estivemos juntos, em alma e carne, pelo amor que sentimos, não tive intensão de corrompê-la...

- É por isso que viemos? Para provar que fizemos a coisa errada, pelos motivos certos? Thomas... Às vezes esqueço dessa sua inocência - disse, passando uma mão pela face do homem, sentindo seus pensamentos vazarem por seus poros, e circulando por suas veias. Era uma das razões pela qual se entregara a ele...Era homem formado, mas com a honra intacta de uma criança.

Não houve tempo para mais considerações. Nesse momento, os portões para o salão fora aberto, e vários olhos os encararam em sincronia.

Todos os anciãos se encontravam em circulo, vestidos com mantas brancas e cordões dourados na cintura. A mistura de luz no salão era incrível. Pisos e paredes de mármore negro e uma enorme abertura no teto. Um ancião se levantou e falou numa voz rouca, quase que inaudível:

- Aproximem-se, oráculo e guardião.

- Ora, não vejo necessidade de chamá-los por oráculo e guardião. Sendo que se uniram perante os deuses. Ou, se preferir, contra a vontade dos deuses.

Uma mulher se aproximou do centro. Tinha uma feição severa. Ela havia sido protetora de Lira, havia lhe transmitido tudo que pudesse. Sentia-se traída por sua pupila. Thomas se mantinha atrás de Lira como estava acostumado. Mas não gostava nem um pouco do rumo que o clã estava levando. Não tinha paciência, sabia que não tinha palavra perante todos, mas aquilo era antes de se unir a Lira.

- Peço perdão por quebrar tantas tradições de seu clã e de minha criação. Sei que minhas palavras podem não ter valor algum.

- Se sabe que não tens valor aqui, porque insiste, Lobo? - a mesma mulher o interropera.

- Deixe-o falar, Portisa. - Uma pequena porta atrás de Thomas se abriu, o mais experiente dos oráculos andava calmamente pelo salão. A maioria deles não nunca tinha visto o sábio oráculo. Uma onda de reverências se fez presente quando Sávius sentou-se no meio do círculo. - Aproxime-se Thomas, filho do grande Magnus e conte-nos o que estava dizendo antes de ser interropido.

Thomas se aproximou e sentou-se perto do oráculo. Todos olhavam a cena estupefatos.

- É uma honra imensa tê-lo conosco, sábio oráculo. - Lira falou curvando-se e mantendo-se prostada.

- Meu dever - continuou Thomas - é proteger o oráculo. Não falhei nesta função, mas falhei por corromper suas habilidades, por corromper seu futuro. Eu entrego minha vida, que já não vale nada, em troca da impunidade de Lira.

Thomas se curvou esperando que a visão de Lira se contretiza-se. Estava suando, o medo percorria suas veias. Lira aproximou-se e segurou sua mão. Ela estava quente e lhe passava sensações agradáveis, sensações que eram capazes de mudar seus pensamentos, de torná-los amenos.

- Meu jovem, os deuses são tão severos nos destinando a não tocar no que mais desejamos. Mas se pararmos para pensar do motivo para tudo isso fica claro que algo tão forte não pode seguir padrões. Oráculos, após descobertos e devidamente instruídos, devem se manter puros. Isso nos é dado como uma ordem, mas o que todos os oráculos esquecem ao passar a morar nos templos, é que ainda são humanos. Humanos com desejos, com sentimentos, capazes de obedecer e desobedecer. Se descobrir como oráculo pode ser algo simples, abdicar de uma vida com alguém capaz de se entregar é algo complexo. Acredito que alguns de meus irmãos tenham visto sua morte, Thomas. Inclusive Lira a viu. Seu erro foi ter descrito a você. Mas eu compreendo seu medo. Então, peço que cada um de meus irmãos avaliem bem suas palavras sobre o futuro desses jovens. Sejam realmente oráculos e não meros bonecos que se julgam capazes de mudar o futuro das pessoas.

Ele se levantou, passou e tocou na cabeça de Lira e Thomas, sussurrou algo em uma língua antiga que nenhum deles compreendeu no momento e voltou para sua sala. Um vozerio se espalhou pelo salão. Lira e Thomas continuavam de mãos dadas. Ela sussurrava baixinho: "Tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem".

As vozes foram diminuindo, os oráculos voltavam a formar um circulo e Portisa tomou a frente:
- Você seria uma grande oráculo, eu via isso. Mas essas visões foram sumindo e outras tomaram lugar. Eu negava-as. Assim como estava te negando ao entrar impura nesta sala. Vedei meus olhos perante a verdade, mas agora posso ver o que tu consegues enxergar nesse lobo. Sejas livre e feliz, pequena.

Lira se curvou e beijou os pés de Portisa. Estava unida com sua protetora novamente, mas sabia que essa sensação duraria apenas enquanto estivessem no templo.
Após isso, os Lórien saiam um a um passando pelo casal e falando em línguas diferentes. O salão ficou vazio, exceto por eles dois. Continuavam de mãos dadas.

Lira apressou-se, puxando Tom consigo para fora dali. Porque tinha a sensação de que aquilo parecia melhor do que realmente era? Talvez pelas palavras do sábio. Talvez pelo modo como Portisa, de quem tinha certeza que nunca receberia o perdão pelo abandono de sua pureza, lhe desejara felicidade e liberdade. Algo naquela situação não era certo.

Cruzaram o pátio com passos largos, em direção à rua. Queria ver, literalmente, aquela mansão pelas costas.

Era grata à sua sentença bondosa, mas era ainda mais grata pela vida de Tom, que fora poupada.
De repente, uma pontada. E mais uma. Sentia sua mente entrar em órbita novamente.
Um flash rápido foi seu único aviso.

Um jovem, cujo rosto não lhe era familiar, mas a quem podia facilmente associar à sua antiga mentora pelo fluxo de memória que liberava. Em sua mão esquerda, uma adaga afiada. Na direita, uma fita vermelha. Era um anúncio de justiça.

Sentiu-se confusa com a cena, e chacoalhou-se de volta à realidade. Precisavam sair daquele lugar rapidamente, e tinha, de alguma forma, certeza de que não conseguiriam. Em um movimento instintivo, pôs-se à frente de Tom, abrindo os braços para protegê-lo.

Tom foi pego de surpresa, e não pode detê-la.

Nesse momento, um jovem, empunhando uma adaga, perfurou o coração de Lira.


[fim da primeira parte]

4 comentários:

  1. A maior alegria de um fã é poder fazer algo com seu idolo.
    E eu tenho muito orgulho de poder escrever junto com você, Ju!

    E os detalhes acrescentados ficaram otimos! Sensação de estar dentro da história.

    E que venham as próximas partes!

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  2. Não sei, acho que Lira tem algo de mim, além do nome, claro. Adorei! Esperando a segunda parte! ^^

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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