quinta-feira, 20 de março de 2014

Sobre a bulimia






My body is a cage

That keeps me from dancing with the one I love
But my mind holds the key
Arcade Fire - My Body is a Cage



“Eu acho que nunca vi você sendo você mesma em público”. Essa era a explicação delicada dele depois de me chamar de camaleão social – uma coisa que se adapta aos padrões cromáticos do meio em que se encontra. Que se camufla.

Me perguntei o que ele queria dizer com “em público”. Às vezes, quando estou sozinha, eu estou em público comigo mesma. Tenho mil olhos da minha própria consciência me vigiando, me julgando e observando cada coisa que faço.

E às vezes, quando estou em meio a tanta gente, me sinto numa ilha, isolada das pessoas por oceanos inteiros.

Segundo ele, os oceanos são preços que eu me arrisquei a pagar. Eu concordo, eu concordo… Quando a gente se joga, quando a gente vai atrás do que quer, a gente põe coisas à prova… Amizades, certezas, paixões.

Tento responder como se a indagação dele fosse uma pergunta. Ele já me viu ser eu mesma em público?

Eu lembro de quando era adolescente, quando eu ainda estava na escola. Posso não lembrar dos fatos, dos dias, dos detalhes. Mas eu lembro de algumas sensações. Algumas importantes sensações que me faziam… Eu.

Um buraco no fundo do estômago. Um buraco no meio do peito. Talvez eu não soubesse quem eu era, talvez eu não gostasse de quem eu era. Eu não fiquei tempo o bastante no consultório da psicóloga para descobrir tudo isso… Mas eu lembro dos meus 14 anos.

Eu lembro do peso das palavras e de como elas ficavam comigo. De como eu não sabia colocá-las para fora, e como ainda não sei. Eu comia as palavras, eu comia os sentimentos. Eu comia minha personalidade.

E eu comia tudo o que via pela frente.

“Você não come, você engole”

“Isso não é uma família, é uma criação de baleias”

“A única coisa que você sabe fazer é comer”

“Você é gorda mas você é legal”

“Ele me perguntou se eu ficaria com você, caso você emagrecesse e ficasse gostosa”

“Gorda é a única coisa que você é”

Gorda gorda gorda gorda gorda gorda gorda gorda.

E então os dedos. O escape da culpa. A outra forma de culpa.
Você sabia que você pode ter bulimia por anos e ninguém nunca saber? Você sabia que dizer bulimia pode ser tão doloroso quanto ter a própria doença?

Você sabia que o tratamento não é rápido, não é prático e não faz você deixar de ser bulimica? Ou gorda?

Você sabia que seu psiquiatra pode te dar um anti-depressivo e dizer que vai te ajudar a emagrecer. E que se você quiser, ele pode aumentar a dose?

Você sabia que você pode ficar com medo de ir ao psicólogo, porque você sabe que você vai mentir pra ele? E então ele vai perceber e se decepcionar. E você não quer ser a decepção na vida de mais ninguém.

Eu descobri isso tudo ano passado, quando resolvi começar a me tratar, depois de 10 anos de “doença”. E ainda estou descobrindo um monte de coisa. E descobrindo que ninguém tem, ou precisa ter, a paciência para entender tudo isso comigo.

Mas que se eu não tiver paciência comigo mesma…


Bom, eu vou passar a minha vida toda achando que, se eu for eu mesma em público, as pessoas só vão ver uma gorda bulimica e rir de mim.

E parte forte de mim sabe que isso não é tudo o que eu sou.





4 comentários:

  1. Eu não tenho palavras para descrever como estou emocionada aqui.
    Parece que foi ontem que compartilhamos do então segredo, e eu puxei a sua orelha sobre a necessidade de bater de frente com o problema (na verdade, penso que me acha uma baita de uma chata, né?)
    E hoje, você está aí, dividindo com o mundo esta luta, esta jornada, e eu não poderia estar mais feliz por isso.
    O problema deixou de ser, afinal, um problema: Afinal, ele só o é quando deixamos que seja; no fim das contas, somos nós quem, vez ou outra, fortalecemos os problemas com nossos medos, angústias.
    Hoje, a Juliana Cimeno mostra ao mundo que é possível ser a diferença: Você fez e faz a sua força, e já pode se considerar uma vitoriosa, apesar da luta de todos os dias.
    Parabéns, Ju.
    Orgulho imenso <3

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  2. Ah, Ju, que orgulho de ti guria, porque tomar a decisão de combater o problema é uma das atitudes mais complicadas da vida. Ninguém nunca pensa em quem está naquele corpo, em quem é a "gorda", sempre é o exterior. Como se fossemos uma casca com 10cm de tecido gorduroso e nada mais, como se aquele aperto no peito não causasse dor e pior, medo.
    Tenho várias cicatrizes pelo corpo, fui a menina suicida, a menina que se cortava, que queria chamar a atenção, que queria morrer sem motivo. E o mais triste de tudo, era perceber como era reduzida aos meus problemas, sem qualidades, sem personalidade, como você bem colocou.

    Muito obrigada por esse texto, ele externa várias questões universais :)

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  3. A música foi uma ótima escolha. Escrever sempre. Alteridade é algo que chega aos poucos e para poucos.
    Entender que nós (meu eu, seu eu) somos as peças chaves, as principais, leva tempo. Capaz de ser a vida toda.
    Penso que a ideia se forma na cabeça, vira ação ou vira palavras escritas e aí estamos caminhando para algo melhor. É o que queremos.

    As palavras pesam muito. Mesmo que transcritas para outro lugar como esse. Burn, burn, burn.

    Não somos ilhas. Somos universos, minha cara amiga.

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  4. Desculpa, mas a única verdade aqui é o riso amargo do que não ajuda...
    Menos do seu texto, mais do apoio que ele recebeu nessa seção.
    Eu poderia te oferecer conforto, mas compartilho sinceridade.
    E por isso admito que eu rio. Intencionalmente.
    Eu rio pq a grande força não está em admitir, ou enfrentar o problema, não se iluda quanto a isso, afinal quantas coisas você, ou qualquer um de nós, começa e não sai do básico?
    Rio também pq conselho por conselho é como biscoito da sorte, te entretém por 5 minutos, faz você pensar em quanto tempo uma pessoa leva pra pensar numa frase assim por mais uns 2,5 minutos, e depois você amassa e joga fora.
    E rio também porque não somos maiores do que somos. Não somos universos Juliana, teremos mesmo sorte é se um dia formos ilhas.
    Aqui está a sua carta de alforria, sua declaração pública de emancipação ao status de gente ao invés do de coisa, mas a liberdade é muito mais do que uma declaração de sua obtenção. É a dor das correntes e o riso do capataz que conhecemos, e eles não vão embora só porque resolvemos assumir ou ganhar a nossa liberdade. Eles trocam o chicote pelo deboche, a humilhação pelo descaso. E eles riem de você.
    E eles vão continuar rindo, a sua resistência é a vitória deles. Enquanto você não quiser que eles riam de você, você continuará sendo motivo de piada.
    Pegue o riso e devolva a piada.
    O mais difícil não é começar, mas é seguir em frente.
    Enquanto você se guarda, não se mostra, se poda diante até mesmo do espelho, a única coisa que cultiva é o que os outros veem, e ninguém nunca vê no outro nada além daquilo que ele sabe que nele mesmo é melhor.
    Não é sussurrar o conselho, mas carregar silenciosamente a decisão.
    Não é se achar universo com infinitas possibilidades, mas se reconhecer ilha. Limitada. Isolada.
    O mais difícil é tornar-se a ilha fantástica, privilégio de poucos bem aventurados, onde o riso é reflexo, e nunca intenção.

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